Crítica — Ruptura

Gustavo Rodrigues
4 min readMay 13, 2022

Ruptura é até agora a produção televisiva mais surpreendente de 2022. Apesar de séries grandiosas serem muito aguardadas para esse ano, como House of the Dragons, o spin-off de Game of Thrones, e a estreia de Os Anéis de Poder, é muito difícil algo chegar ao mesmo nível de qualidade da produção da Apple TV+. O projeto de ficção-científica criado por Dan Erickson faz da sua narrativa o elemento intensificador de todas as angústias presentes no texto, assim permitindo que o telespectador se enxergue em aspectos da história, simpatize pelos personagens e fique angustiado com o brilhante desfecho da temporada.

Na trama, acompanhamos Mark Scout (Adam Scott) se tornar o chefe da seção de Refinamento de Macrodados da Lumon, uma empresa tão poderosa que não é possível resumir qual é a especialidade de seus produtos. Entretanto, essa área da companhia possui vários empregados que passaram pelo procedimento de ruptura, que permite à pessoa esquecer a vida exterior do trabalho e não lembrar nada do que foi vivido no expediente posteriormente na sua vida fora desse ambiente, assim dividindo o ser em duas pessoas dentro do mesmo corpo.

A própria sinopse de Ruptura já escancara a discussão possível dentro dessa perspectiva de separar a si mesmo em duas partes e a contextualização do ambiente que eles são inseridos. Contudo, tudo isso ganha intensidade pela forma que a narrativa torna as situações desconfortáveis — o que faz a estranheza da série ainda mais prazerosa. Desde os primeiros minutos, quando somos introduzidos à Helly (Britt Lower), muitas perguntas ganham holofote e se tornam cada vez maiores conforme a trama cresce.

Esse sucesso é um resultado imediato da excepcional produção executiva e direção de Ben Stiller, que já havia agradado públicos diferentes nessa função em Trovão Tropical, A Vida Secreta de Walter Mitty e Escape at Dannemora. Todos os episódios dele possuem momentos que a mão do diretor fica evidente, principalmente na condução que situações simples poderiam ser filmadas. A primeira entrevista da Helly, por exemplo, abusa de enquadramentos que intensificam a angústia da personagem ou o bizarro caminhar feliz do Mark pelo corredor de labirinto da Lumon.

Para a narrativa ser tão efetiva na execução da história, outros elementos técnicos precisam acompanhar a direção e atuação em excelência. A sensação de estar enclausurado dentro de um labirinto pelos corredores da Lumon e toda a apatia do ambiente recriam os locais que o criador de Ruptura odiou trabalhar e serviram de inspiração para o projeto. O dolly zoom utilizado magistralmente para identificar as mudanças de comportamento dos personagens na entrada ou saída da empresa não serve apenas como interruptor, mas para sinalizar que algo está saindo do seu estado natural.

Esse ambiente sem vida do setor de Refinamento de Macrodados amplia seu significado conforme os personagens começam a ganhar propósito através de suas descobertas ou até mesmo nas festas inusitadas que os funcionários recebem ao executar uma quantia especial de tarefas. A trilha sonora é parte fundamental desse processo. Ela é exagerada ao mostrar a felicidade do protagonista, inquietante nas cenas de suspense e intensa no último episódio. A utilização inteligente do rock como elemento narrativo de inspiração dá mais intensidade às emoções.

O roteiro, encabeçado por Dan Erickson, não se limita em explicar os conceitos de ficção-científica que estão no cerne de Ruptura, mesmo que isso seja fundamental para que o telespectador compreenda como os personagens são afetados pelas implicações do procedimento de divisão mental. Os episódios conduzem muito bem o suspense crescente, deixam pistas de aspectos que são respondidos, abrem espaço para teorias e surpreendem quando o vínculo pelos personagens foi nutrido.

O arco de desenvolvimento dos personagens só se torna tão prazeroso porque os atores conseguem entregar personalidades diferentes para os seus personagens, torná-los carismáticos e curiosos por eles mesmos. Apesar da aclamada Patricia Arquette e do ótimo protagonista do Adam Scott, os maiores destaques ficam para Travel Tillman dando vida ao polivalente Milchick, Britt Lower com sua impulsiva Helly e John Turturro sendo extremamente cativante sempre que conhecemos um pouco mais sobre o Irving.

Ruptura chega surpreendente como uma obra de ficção-científica rica de detalhes, qualidade narrativa e indagações que permeiam seus personagens, mas que ganham espaço no íntimo do telespectador. De qualquer forma, a produção da Apple TV+ já foi renovada para a segunda temporada, mesmo que ainda não tenha se tornado tão popular como poderia. Entretanto, ela deve ter mais destaque nos próximos meses se não for esnobada pelo Emmy. Para quem viu os nove episódios do primeiro ano da produção, só resta imaginar o que deve acontecer depois do season finale de tirar o fôlego.

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Gustavo Rodrigues

Jornalista que se perde em devaneios sobre a vida e cultura pop